sexta-feira, 31 de julho de 2015

#09 A riqueza catariana

Um pedacinho de chão no sudoeste asiático
Um dos maiores contrastes pelo qual passamos, até agora, aconteceu na partida da Índia rumo ao Qatar. Do belo e emergente país asiático para o terceiro maior PIB per capita do mundo: Doha. A cidade concentra grande parte da atividade econômica e financeira do país, com uma população de aproximadamente 900,0 mil pessoas, e importa quase que integralmente todos os alimentos que consome. 
Estar em contato com uma nação predominantemente muçulmana, diferente da maioria cristã no Brasil, é um verdadeiro exercício compreensão e busca pelo não-julgamento. O Islão é duramente criticado – principalmente no ocidente – pelo tratamento às mulheres e rigidez de seus princípios. 
Particularmente, considero um privilégio a oportunidade de inserção nessa cultura (excluídos os pontos de inflexão), e observação de sua conduta, em seu habitat. Um olhar crítico sobre os acontecimentos desse país é necessário, ao mesmo tempo em que não me considero apta a julgá-lo. Não se acusa o que se desconhece.
Estivemos em Doha num período muito especial do ano para os muçulmanos: o Ramadão, o nono mês do calendário islâmico. É o mês no qual os muçulmanos praticam o jejum ritual, o quarto dos cinco pilares do Islão. É um tempo de renovação da fé, da prática mais intensa da caridade, e vivência profunda da fraternidade e dos valores da vida familiar. É extremamente desrespeitoso ingerir qualquer alimento/líquido na presença dos fiéis. Foi uma experiência diferente para nós.
A passagem pelo país foi rápida (quatro dias), e contamos com o acompanhamento da bolsista Kara Knudsen, participante do programa da Nuffield em 2013. 
Dia 1: na primeira visita estivemos com David Beatty, da Meat and Livestock Australia (MLA). A empresa, de instituição pública, realiza pesquisas na indústria de carnes australiana e promove o produto australiano nos exterior.
A Austrália é um dos produtores de gado mais eficientes no mundo, e terceiro maior exportador de carne bovina. Estima-se que a renda bruta originada da produção de bovinos e vitelos no país aproxime-se dos US$ 7,7 bilhões. Discutimos, principalmente, os desafios de inserção de produtos nacionais em mercados externos, e o potencial demandante do Qatar. A população local cresce agressivamente, e o país prepara-se, desde já, para receber milhares (milhões?) de turistas na edição de 2022 da Copa do Mundo – centenas de construções por toda a Doha, em sua maioria com a finalidade de atender ao evento.
Dia 2: estivemos na Hassad Food, apresentada por Andrew Goodman.
Desde a sua criação, a empresa adotou um estado da arte modelo de investimento, objetivando oportunidades internacionais, sob perspectivas viáveis para sustentar as necessidades alimentares do Qatar.
A Hassad Food atua verticalmente em diversas cadeias, no Qatar, Austrália, Paquistão e Omã, potencialmente vindo a expandir sua influência na Europa, América do Norte e do Sul. 
Através de suas várias subsidiárias, produz 9,0 mil toneladas de forragem, 3,0 milhões de flores, 100,0 toneladas de vegetais, 190,0 mil toneladas de grãos e 290,0 mil ovelhas.
Sendo awesome na Roza Hassad
O objetivo maior da empresa é garantir segurança alimentar ao Qatar, seja através de grandes empreendimentos internacionais, seja apoiando comunidades locais a desenvolverem sua produção.
Atualmente, a Hassad é ativa na tentativa de mostrar ao governo que muito pode ser cultivado no deserto. Parte-se, então, para uma discussão do que é economicamente mais vantajoso: investir o quanto possível na facilitação de entrada de alimentos no país, e no firmamento de acordos intercontinentais, ou dividir as atenções com possíveis projetos que estimulam a agricultura local, ainda que sob condições tão adversas?
Numa perspectiva superficial e imediatista, é óbvio o estímulo à produção regional, mas então Andrew, de maneira muito perspicaz, nos mostrou alguns dos projetos que possibilitariam o desenvolvimento agrícola em terras agrícolas próximas a Doha, de maneira sustentável, estudos esses que têm sido estruturados há anos por dezenas de cientistas, agrônomos e economistas, e então pudemos visualizar o tamanho do desafio de se fazer crescer plantas em regiões ermas. Falamos aqui de bilhões de dólares em investimento, décadas de preparo do solo e construções gigantescas que permitam condições ambientais apropriadas ao crescimento da vegetação (a temperatura lá chega fácil aos 50ºC). Qual é o custo de oportunidade de um investimento bilionário desses? Qual seria a potencial expansão do consumo, ou aprimoramento da seguridade alimentar, caso esse mesmo capital fosse aplicado na abrangência da influência catariana sobre o trading global agrícola? A conclusão não é tão óbvia assim... 
À tarde, nos encontramos com Mohammad Fawzy e Salim Pathan, da Qatar Flour Mills (QFM).
A QFM possui 40 anos de atuação, e importa e processa grãos em Doha, distribuindo seus derivados a todo o país. Essa foi uma das únicas oportunidades que tive, até o presente, de conhecer um negócio movido por demanda (teoricamente) inelástica, que garantirá a oferta, independente das condições de mercado. Tudo bem que as condições sejam excepcionais, mas isso não deixa de ser incrível.
As estimativas de crescimento populacional proporcional do país são impressionantes. Nos últimos cinco anos, a população catariana expandiu de 1,5 milhão de pessoas para 2,2 milhões, e para os cinco próximos anos esse número deve chegar a 3,5 milhões. Fornecer alimento a um país que importa 98% de seu consumo envolve uma matemática complicada. Deve-se suprir a demanda atual, pensando à frente na acelerada expansão populacional, sempre com uma margem de estoque capaz de abastecer o país por seis meses (estoque/uso deve ser igual a 50% da demanda do ano + variação de aumento do consumo). 
Na QFM
Perguntei à Salim e Mohammad se, devido à exposição do Qatar às circunstâncias exógenas (mercado internacional), havia algum mecanismo de segurança contra as oscilações dos preços das commodities. A resposta é que não, não há. A QFM garantirá a oferta de seu produto independente do que se paga pela matéria-prima. O que move o país é a demanda, e não o preço. Isso, meus amigos, é que é ser privilegiado.
Já como um reflexo do aumento populacional, a QFM está sempre rodando em capacidade máxima, e sempre expandindo. As expectativas quanto aos rumos do negócio são, até o momento, as melhores possíveis.
Dia 3: visitamos o mercado de frutas e vegetais e o de camelos. Frutas frescas, vegetais bonitos, alimentos muito bem conservados... e sob um sol de quase 50ºC. É surpreendente o quão eficiente é o sistema logístico da região. Em condições de calor extremo, empresas importam, processam, distribuem, comercializam produtos altamente perecíveis por todo o país, sem qualquer comprometimento de qualidade.
Estar no Qatar foi como estar na bolha Singapura: um país extremamente capitalizado com grandes projetos e sonhos, justamente por ter condições de subsidiá-los. Ainda assim, o bom entendedor capta o que é dito e também o que não o é. E os trabalhadores “chão de fábrica”? Os que ocupam as atividades sumariamente braçais, as mais simples, primárias na cadeia de valor... Será que têm acesso às mesmas oportunidades de desenvolvimento? Será que participam do crescimento do país? Será que são nativos, ou mão-de-obra importada de economias emergentes? Quem está construindo as mais de 500 estruturas que esperam a Copa do Mundo em 2022? Isso cabe ao bom entendedor descobrir.

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